Muito além da postura nobre, do batom marcado e do vermelhíssimo Jean Patou, existe uma Tarsila do Amaral (1886-1973) sobrevivente no autorretrato de 1923. Não foi uma vida fácil. “Diria que a história dela é quase o oposto ao que pintou. Porque os quadros da Tarsila mais conhecidos, aqueles corriqueiros, são telas com cores muito ingênuas, frescas, alegres. A impressão que se tem é que estamos num reino encantado. E foi tudo ao contrário”.
Quem fala é a historiadora Mary Del Priore, há anos envolta na sucessão de equívocos que foi a trajetória da pintora – protagonista de “Tarsila: Uma vida doce-amarga”, biografia publicada no ano passado pela editora José Olympio. O livro ilumina a jornada de um dos nomes mais importantes das Artes Plásticas brasileiras por meio de fatos ainda encobertos, frutos de uma vida íntima pouquíssimo conhecida, tragada pelo sofrimento e pela abnegação.
A criadora do “Abaporu” frustrou-se com quatro maridos, perdeu a filha para uma doença e a neta para um acidente. Foi abandonada por amores, acumulou poucos amigos e, desprezada pela crítica da época, terminou a carreira vendendo quadros sob encomenda. Ainda assim, conservava o sorriso generoso e a tez mansa. Voz doce e presença suave.
“Ela é o exemplo vivo daquilo que chamo de anti-dolorismo. Em momento nenhum sente pena dela mesma. Sofre o pão que Asmodeus amassou, mas – escorada nos valores que hoje mudaram completamente, valores de época – sempre se levanta. Usa todas as características que se esperava de uma mulher daquele tempo para continuar sobrevivendo”.MARY DEL PRIOREHistoriadora e escritora
Mas por que tantos infortúnios? Vamos aos fatos. Nascida em Capivari, interior de São Paulo, Tarsila cresceu em uma família considerada um dos velhos e bons clãs da classe média alta paulista. Pouco se conhece, contudo, dos primeiros anos de menina.
Sabe-se que teve seis irmãos na fazenda. E que o pai, embora não fosse milionário – era um agricultor mediano com uma pequena fazenda, mas constituído de tradição – perdeu tudo no crash da bolsa de Nova York, em 1929. Talvez, a partir daí, o caminho da pintora comece a se lançar no abismo.

Del Priore narra a vida de Tarsila, dona de uma personalidade complexa e intrigante, com riqueza de escrita confessional e apurada de uma historiadora dedicada a estudar o universo feminino. Tarsila experimentou a riqueza e a pobreza, a liberdade e a prisão. E os marcos da vida da artista revelam os contextos de um Brasil preconceituoso e machista.
INTENSA E EM DECLÍNIO
A separação do primeiro casamento aconteceu quando o Código Civil espelhava o patriarcado, como descreve Del Priore no livro: “Só dava três opções à mulher separada ou desquitada: voltar para a casa dos pais, onde seria criticada pelo fracasso do casamento; entrar para a prostituição, se fosse pobre e sem preparo profissional; unir-se ao homem que viesse a amar, sabendo que teria o repúdio da sociedade ‘por não ser casada’”.
A arte levou Tarsila a conhecer os artistas que ampliaram seus horizontes, a levaram para diferentes lugares do mundo e a experimentar diferentes maneiras de expressar a vida. Uma vida intensa, mas em permanente declínio. “A pintura dela só é reconhecida a partir de 1963, ou seja, há décadas no mais absoluto limbo”.
Quem imaginou que a mulher que abusou das cores e das formas, inspirou filmes e coleções de moda, cujos quadros valem milhões no mercado de arte, chegou a ser pintora de parede em construções no avançar da vida? “Até que ela toma um tombo, faz uma operação na coluna e fica entrevada. A Tarsila termina a vida em cima de uma cama, numa cadeira de rodas”.

Não à toa, essa importante personagem que recebeu insultos e sofreu intolerância foi, como revela Del Priore, “vítima de seu tempo”. Mesmo diante de tudo, cultivava a serenidade, “mantinha a capacidade de ficar de cabeça erguida”. Força vinda da fé religiosa.
“Essa fé a constitui, que lhe dá identidade social – lembro que ela sempre estudou em colégio de freira, logo pinta muito crucifixo, santo, ou seja, toda a formação pictórica da Tarsila é muito acadêmica, com muita influência desse ambiente religioso. E ela termina a vida vivendo exatamente aquele modelo de mulher”.
Mulher que se pintou gloriosa, que morreu vivendo o que acreditava e segue inspirando gerações. Inclusive a própria Mary, que estudou no mesmo colégio de Tarsila – o Nossa Senhora de Sion, tradicional instituição de ensino localizada no bairro de Higienópolis, região central de São Paulo – e se diz sintonizada com a artista em alguns aspectos.
Sublinhando que a biografia foi toda construída por meio de informações encontradas em jornais – uma vez que os amigos próximos de Amaral já estavam mortos – Mary Del Priore retoma a meditação sobre o tempo para situar Tarsila na História.
“Tarsila definitivamente não é uma feminista, uma mulher à frente de seu tempo. Ao contrário: acho que o tempo da Tarsila mastiga até os ossos essa pobre mulher, e acaba cuspindo ela. Só depois que ela vai ser realmente, digamos, descoberta”.
PARA VER TARSILA
Nestes 101 anos da Semana de Arte Moderna, completos nesta segunda-feira (13) – quando iniciava o evento que pautou inúmeras discussões e até hoje inspira projetos e trabalhos – cabe saber também onde estão os quadros de Tarsila, aprimorando as premissas apresentadas na biografia de Del Priore.
O “Abaporu” (1928), por exemplo, um dos quadros mais famosos da artista, não está em solo brasileiro, mas no Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (Malba).

A tela “O Pescador” (1925), por sua vez, está exposta no Hermitage Museum, de São Petersburgo. O quadro aborda um tema excepcionalmente brasileiro: um pescador, sentado em uma pedra em um lago, em meio a uma pequena vila com casinhas e vegetação típica.
Fonte: Diário do Nordeste